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Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e instruíram.
No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror _ mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum _ uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.
Pluto _ assim se chamava o gato _ era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento _ enrubesço ao confessá-lo _ sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim _ que outro mal pode se comparar ao álcool? _ e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão _ dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti- lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado _ um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de “fogo!”. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo _ coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras “estranho!”, “singular!”, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei- me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando- o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme _ tão grande quanto Pluto _ e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo _ e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse _ detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando- se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.
De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por quê _ seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos – muito gradativamente _ , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava- se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo _ apresso-me a confessá-lo _ , pelo pavor extremo que o animal me despertava.
Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar _ sim, mesmo nesta cela de criminoso _ , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível _ que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa _, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável _ um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído… uma besta- fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso _ encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim _ pousado eternamente sobre o meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros _ os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade _ e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.
E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão”.
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite _ e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia _ e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram- me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.
_ Senhores _ disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada _ , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída… (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes _ os senhores já se vão? _ , estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!
Edgar Allan Poe
A “Morte Escarlate” havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca ? a cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.
Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos. Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero do que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro. O mosteiro dispunha de amplas provisões. Com essas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O mundo externo que cuidasse de si mesmo. Nesse meio-tempo era tolice atormentar-se ou pensar nisso. O príncipe havia providenciado toda a espécie de divertimentos. Havia bufões, improvisadores, dançarinos, músicos, Beleza, vinho. Lá dentro, tudo isso mais segurança. Lá fora, a “Morte Escarlate”.
Lá pelo final do quinto ou sexto mês de reclusão, enquanto a peste grassava mais furiosamente lá fora, o príncipe Próspero brindou os mil amigos com um magnífico baile de máscaras.
Era um espetáculo voluptuoso, aquela mascarada. Mas antes vou descrever onde ela aconteceu. Eram sete ? um suíte imperial. Em muitos palácios, porém, essas suítes formam uma perspectiva longa e reta, quando as portas se abrem até se encostarem nas paredes de ambos os lados, de tal modo que a vista de toda essa sucessão é quase desimpedida. Ali, a situação era muito diferente, como se devia esperar da paixão do duque pelo fantástico. Os salões estavam dispostos de maneira tão irregular que os olhos só podiam abarcar pouco mais de cada um por vez. Havia um desvio abrupto a cada vinte ou trinta metros e, a cada desvio, um efeito novo. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica dava para um corredor fechado que acompanhava as curvas da suíte. A cor dos vitrais dessas janelas variava de acordo com a tonalidade dominante na decoração do salão para o qual se abriam. O da extremidade leste, por exemplo, era azul ? e de um azul intenso eram suas janelas. No segundo salão os ornamentos e tapeçarias, assim como as vidraças, eram cor de púrpura. O Terceiro era inteiramente verde, e verdes também os caixilhos das janelas. O quarto estava mobiliado e iluminado com cor alaranjada ? o quinto era branco, e o sexto, roxo. O sétimo salão estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do teto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade. Apenas nesse salão, porém, a cor das janelas deixava de corresponder à das decorações. AS vidraças, ali, eram escarlates ? uma violenta cor de sangue.
Ora, em nenhum dos sete salões havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos de ouro espalhados por todos os cantos ou dependurados do teto. Nenhuma lâmpada ou vela iluminava o interior da seqüência de salões. Mas nos corredores que circundavam a suíte havia, diante de cada janela, um pesado tripé com um braseiro, que projetava seus raios pelos vitrais coloridos e, assim, iluminava brilhantemente a sala, produzindo grande número de efeitos vistosos e fantásticos. Mas no salão oeste, ou negro, o efeito do clarão de luz que jorrava sobre as cortinas escuras através das vidraças da cor do sangue era desagradável ao extremo e produzia uma expressão tão desvairada no semblante do que entravam que poucos no grupo sentiam ousadia bastante para ali penetrar.
Era também nesse apartamento que se achava, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo oscilava de um lado para o outro com um bater surdo, pesado, monótono; quando o ponteiro dos minutos completava o circuito do mostrador e o relógio ia dar as horas, de seus pulmões de bronze brotava um som claro e alto e grave e extremamente musical, mas em tom tão enfático e peculiar que, ao final de cada hora, os músicos da orquestra se viam obrigados a interromper momentaneamente a apresentação para escutar-lhe o som; com isso os dançarinos forçosamente tinham de parar as evoluções da valsa e, por um breve instante, todo o alegre grupo mostrava-se perturbado; enquanto ainda soavam os carrilhões do relógio, observava-se que os mais frívolos empalideciam e os mais velhos e serenos passavam a mão pela teste, como se estivessem num confuso devaneio ou meditação. Mas, assim que os ecos desapareciam interiormente, risinhos levianos logo se riam do próprio nervosismo e insensatez e, em sussurros, diziam uns aos outros que o próximo soar de horas não produziria neles a mesma emoção; mas, após um lapso de sessenta minutos (que abrangem três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), quando o relógio dava novamente as horas, acontecia a mesma perturbação e idênticos tremores e gestos de meditação de antes.
Apesar disso tudo, que festa alegre e magnífica! Os gosto do duque eram estranhos. Sabia combinar cores e efeitos. Menosprezando a mera decoração da moda, seus arranjos mostravam-se ousados e veementes, e suas idéias brilhavam com um esplendor bárbaro. Alguns podiam considerá-lo louco, sendo desmentidos por seus seguidores. Mas era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para convencer-se disso.
Para essa grande festa, ele próprio dirigiu, em grande parte, a ornamentação cambiante dos sete salões, e foi seu próprio gosto que inspirou as fantasias dos foliões. Claro que eram grotescas. Havia muito brilho, resplendor, malícia e fantasia ? muito daquilo que foi visto depois no Hernani. Havia figuras fantásticas com membros e adornos que não combinavam. Havia caprichos delirantes como se tivessem sido modelados por um louco. Havia muito de beleza, muito de libertinagem e de extravagância, algo de terrível e um tanto daquilo que poderia despertar repulsa. De um ao outro, pelos sete salões, desfilava majestosamente, na verdade, uma multidão de sonhos. E eles ? os sonhos ? giravam sem parar, assumindo a cor de cada salão e fazendo com que a impetuosa música da orquestra parecesse o eco de seus passos. Daí a pouco soa o relógio de ébano colocado no salão de veludo. Então, por um momento, tudo se imobiliza e é tudo silêncio, menos a voz do relógio. Os sonhos se congelam como estão. Mas os ecos das batidas extinguem-se ? duraram apenas um instante ? e risos levianos, mal reprimidos, flutuam atrás dos ecos, à medida que vão morrendo. E logo a música cresce de novo, e os sonhos revivem e rodopiam mais alegremente que nunca, assumindo as cores das muitas janelas multicoloridas, através das quais fluem os raios luminosos dos tripés. Ao salão que fica a mais oeste de todos os sete, porém, nenhum dos mascarados se aventura agora; pois a noite está se aproximando do fim: ali flui uma luz mais vermelha pelos vitrais cor de sangue e o negror das cortinas escuras apavora; para aquele que pousa o pé no tapete negro, do relógio de ébano ali perto chega um clangor ensurdecido mais solene e enfático que aquele que atinge os ouvidos dos que se entregam às alegrias nos salões mais afastados.
Mas nesses outros salões cheios de gente batia febril o coração da vida. E o festim continuou em remoinhos até que, afinal, começou a soar meia-noite no relógio. Então a música cessou, como contei, as evoluções dos dançarinos se aquietaram, e, como antes, tudo ficou intranqüilamente imobilizado. Mas agora iriam ser doze as badaladas do relógio; e desse modo mais pensamentos talvez tenham se infiltrado, por mais tempo, nas meditações dos mais pensativos, entre aqueles que se divertiam. E assim também aconteceu, talvez, que, antes de os últimos ecos da última badalada terem mergulhado inteiramente no silêncio, muitos indivíduos na multidão puderam perceber a presença de uma figura mascarada que antes não chamara a atenção de ninguém. E, ao se espalhar em sussurros o rumor dessa nova presença, elevou-se aos poucos de todo o grupo um zumbido ou murmúrio que expressava a reprovação e surpresa ? e, finalmente, terror, horror e repulsa.
Numa reunião de fantasmas como esta que pintei, pode-se muito bem supor que nenhuma aparência comum poderia causar tal sensação. Na verdade, a liberdade da mascarada dessa noite era praticamente ilimitada; mas a figura em questão ultrapassava o próprio Herodes, indo além dos limites até do indefinido decoro do príncipe. Existem cordas, nos corações dos mais indiferentes, que não podem ser tocadas sem emoção. Até para os totalmente insensíveis, para quem a vida e morte são alvo de igual gracejo, existem assuntos com os quais não se pode brincar. Na verdade, todo o grupo parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no rosto do estranho não existia graça nem decoro. A figura era alta e esquálida, envolta do pés a cabeça em veste mortuárias. A máscara que escondia o rosto procurava assemelhar-se de tal forma com a expressão enrijecida de um cadáver que até mesmo o exame mais atento teria dificuldade em descobrir o engano. Tudo isso poderia ter sido tolerado, e até aprovado, pelos loucos participantes da festa, se o mascarado não tivesse ousado encarnar o tipo da Morte Escarlate. Seu vestuário estava borrifado de sangue ? e sua alta testa, assim como o restante do rosto, salpicada com o horror escarlate.
Quando os olhos do príncipe Próspero pousaram nessa imagem espectral (que andava entre os convivas com movimentos lentos e solenes, como se quisesse manter-se à altura do papel), todos perceberam que ele foi assaltado por um forte estremecimento de terror ou repulsa, num primeiro momento, mas logo o seu semblante tornou-se vermelho de raiva.
– Quem ousa… ? perguntou com voz rouca aos convivas que estavam perto ? quem ousa nos insultar com essa caçoada blasfema? Peguem esse homem e tirem sua máscara, para sabermos quem será enforcado no alto dos muros, ao amanhecer!
O príncipe Próspero estava na sala leste, ou azul, ao dizer essas palavras. Elas ressoaram pelos sete salões, altas e claras, pois o príncipe era um homem ousado e robusto e a música se calara com um sinal de sua mão.
O príncipe achava-se no salão azul com um grupo de pálidos convivas ao seu lado. Assim que falou, houve um ligeiro movimento dessas pessoas na direção do intruso, que, naquele momento, estava bem ao alcance das mãos, e agora, com passos decididos e firmes, se aproximava do homem que tinha falado. Mas por causa de um certo temor sem nome, que a louca arrogância do mascarado havia inspirado em toda a multidão, não houve ninguém que estendesse a mão para detê-lo; de forma que, desimpedido , passou a um metro do príncipe e, enquanto a vasta multidão, como por um único impulso, se retraía do centro das salas para as paredes, ele continuou seu caminho sem deter-se, no mesmo passo solene e medido que o distinguira desde o inicio, passando do salão azul para o púrpura ? do púrpura para o verde ? do verde para o alaranjado ? e desse ainda para o branco ? e daí para o roxo, antes que se fizesse qualquer movimento decisivo para dete-lo. Foi então que o príncipe Próspero, louco de raiva e vergonha por sua momentânea covardia, correu apressadamente pelos seis salões, sem que ninguém o seguisse por causa do terror mortal que tomara conta de todos. Segurando bem alto um punhal desembainhado, aproximou-se, impetuosamente, até cerca de um metro do vulto que se afastava, quando este, ao atingir a extremidade do salão de veludo, virou-se subitamente e enfrentou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo ? e o punhal caiu cintilando no tapete negro, sobre o qual, no instante seguinte, tombou prostrado de morte o príncipe Próspero. Então, reunindo a coragem selvagem do desespero, um bando de convivas lançou-se imediatamente no apartamento negro e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, soltou um grito de pavor indescritível, ao descobrir que, sob a mortalha e a máscara cadavérica, que agarravam com tamanha violência e grosseria, não havia qualquer forma palpável.
E então reconheceu-se a presença da Morte Escarlate. Viera como um ladrão na noite. E um a um foram caindo os foliões pelas salas orvalhadas de sangue, e cada um morreu na mesma posição de desespero em que tombou no chão. E a vida do relógio de Ébano dissolveu-se junto com a vida do último dos dissolutos. E as chamas dos braseiros extinguiram-se. E o domínio ilimitado das Trevas, da Podridão e da Morte Escarlate estendeu-se sobre tudo.
O banquete da noite precedente me abalara um tanto os nervos. Estava com uma forte dor de cabeça e sentia-me desesperadamente sonolento. Em vez de sair, portanto, para passar a noite fora, como tencionava, ocorreu-me que o que melhor poderia fazer, após saborear uma pequena ceia, era meter-me logo na cama.
Uma ceia, leve, sem dúvida. Gosto imensamente de queijo derretido com cerveja e torrada quente. Mais de uma libra de uma vez, porém, pode nem sempre ser aconselhável. Entretanto, não pode haver objeção material a duas. E realmente, entre duas e três, há apenas uma unidade de diferença. Arrisquei-me, talvez, a quatro. Minha mulher afirma que foram cinco ? mas, certamente, confundiu duas coisas bem distintas. O número abstrato, cinco, estou disposto a admiti-lo; mas, concretamente, refere-se a garrafas de cerveja preta, sem as quais, a modo de tempero, aquele manjar deve ser evitado.
Tendo dessa forma concluído uma refeição frugal e colocado na cabeça meu barrete de dormir, com a suave esperança de gozar dele, até o meio-dia seguinte, repousei a cabeça no travesseiro e, graças a uma excelente consciência, mergulhei sem demora no mais profundo sono.
Mas quando teve a humanidade realizadas as suas esperanças? Não completara ainda meu terceiro ronco, quando a campainha da porta da rua começou a tocar violentamente e, depois, impacientes pancadas com a aldrava me despertaram incontinenti. Um minuto depois, e enquanto ainda esfregava os olhos, meteu-me minha mulher diante do nariz um bilhete, de meu velho amigo, o Dr. Ponnonner.
“Largue tudo imediatamente, meu caro e bom amigo, logo que receba este. Venha participar de nossa alegria. Afinal, depois de longa e perseverante diplomacia, obtive o consentimento dos diretores do Museu da Cidade, para examinar a Múmia. (Você sabe a que múmia me refiro ). Tenho permissão de desenfaixá-la e abri-la, se for preciso. Estarão presentes apenas poucos amigos ? você é um deles ? está claro. A Múmia acha-se agora em minha casa e começaremos a desenrolá-la, às onze horas da noite.
Sempre seu
Ponnonner”.
Ao chegar à assinatura de “Ponnonner”, senti que já me achava tão desperto quanto um homem necessita estar. Saltei da cama, num estado de êxtase, derrubando tudo quanto se encontrava em meu caminho; vesti-me com uma rapidez verdadeiramente incrível, e dirigi-me, a toda pressa, para a casa do doutor.
Ali encontrei reunido um grupo bem ansioso. Aguardavam minha chegada, com grande impaciência. A Múmia estava estendida sobre a mesa de jantar, e logo que entrei o exame dela foi começado.
Era uma das múmias trazidas, muitos anos atrás, pelo Capitão Artur Sabrestash, primo de Ponnonner, de um túmulo perto de Eleithias, nas montanhas da Líbia, a grande distância de Tebas, às margens do Nilo. As grutas nesse lugar, embora menos magníficas que os sepulcros de Tebas, despertam mais interesse, pelo fato de oferecerem maior número de ilustrações sobre a vida privada dos egípcios. A sala, donde fora retirado o nosso exemplar, era, dizia-se, riquíssima de tais ilustrações, estando as paredes inteiramente recobertas de pinturas a fresco e de baixos-relevos, enquanto estátuas, vasos e mosaicos de magníficos desenhos, indicavam a valiosa fortuna dos mortos.
A preciosidade fora depositada no museu, exatamente nas mesmas condições em que o Capitão Sabrestash a havia descoberto, isto é, o sarcófago estava intacto. Durante oito anos, assim permanecera, exposto apenas, externamente, à curiosidade pública. Tínhamos pois agora a Múmia completa à nossa disposição; e para aqueles que sabem quão raramente chegam intactas às nossas plagas as antigüidades, torna-se evidente, logo, que possuíamos razões de sobra, para congratularmo-nos por nossa boa sorte.
Aproximando-me da mesa, vi sobre ela, uma grande caixa, ou estojo, de quase sete pés de comprimento e talvez com três pés de largura, por dois e meio de profundidade. Era oblonga, mas sem forma de ataúde. Julgamos a princípio que o material empregado fora a madeira do alcômoro, contudo, logo ao cortá-lo, verificamos que era papelão, ou mais propriamente, papel comprimido, feito de papiro. Estava densamente ornamentada de pinturas, representando cenas funerárias e outros assuntos fúnebres, entre os quais serpeavam, nas mais variadas posições, numerosas séries de caracteres hieróglifos, significando, sem dúvida, o nome do falecido. Por felicidade, fazia parte do nosso grupo, o Sr. Gliddon, que não teve dificuldade em traduzir os caracteres, simplesmente fonéticos e representando a palavra Allamistakeo.
Não foi sem esforço que conseguimos abrir a caixa, sem danificá-la, mas tendo finalmente conseguido o que desejávamos, chegamos a uma segunda, em forma de ataúde, e de tamanho consideravelmente menor, que o da de fora, mas, semelhante a ela, exatamente, sob todos os aspectos. O intervalo entre as duas estava preenchido de resina que havia, até certo ponto, apagado as cores da caixa interna.
Ao abrir esta última (trabalho que executamos com bastante felicidade) demos com uma terceira caixa, também em forma de ataúde, e não se diferenciando da segunda em nada de particular a não ser no material de que era feita, de cedro, e ainda exalava o odor característico e altamente aromático dessa madeira. Entre a segunda a terceira e caixa, não havia intervalo, estando uma encerrada ajustadamente dentro da outra.
Removendo a terceira caixa, descobrimos o próprio corpo, que tiramos para fora. Esperávamos encontrá-lo, como de costume, enrolado em numerosas faixas, ou ligaduras de linho; mas, em lugar destas, encontramos uma espécie de bainha, feita de papiro, e revestida duma camada de gesso, densamente dourada e pintada. As pinturas representavam assuntos relativos a vários supostos deveres da alma, e sua apresentação a diferentes divindades, com numerosas figuras humanas idênticas, intentando representar, bem provavelmente, retratos das pessoas embalsamadas. Estendendo-se da cabeça aos pés, havia uma inscrição colunar ou perpendicular, em hieróglifos fonéticos, dando de novo seu nome e títulos de seus parentes.
Em volta do pescoço, assim desembainhado, havia um colar de contas coloridas e colocadas de modo a formar imagens de divindades, do escaravelho, etc., com o globo alado. Na parte mais delgada da cintura, havia um colar semelhante a um cinturão.
Retirando o papiro, encontramos a carne em excelente estado de preservação, sem nenhum odor perceptível. A cor era avermelhada. A pele rija, macia e lustrosa. Os dentes e os cabelos achavam-se em boas condições. Os olhos (parecia), tinham sido arrancados e substituídos por outros de vidro, muito bonitos e imitando perfeitamente os naturais, cem exceção da fixidez do olhar, um tanto acentuada. Os dedos e as unhas estavam brilhantemente dourados.
O Sr. Gliddon foi de opinião, em face do vermelho da epiderme, que o embalsamento se efetuara, totalmente, por meio de asfalto; mas tendo raspado a superfície, com um instrumento de aço, e lançado ao fogo um pouco de pó, assim obtido, o odor de cânfora e de outras gomas aromáticas se tornou sensível.
Rebuscamos bem atentamente o cadáver, para encontrar as aberturas usuais, pelas quais são extraídas as entranhas, mas, com surpresa nossa, nenhuma descobrimos. Nenhum dos presentes, nessa ocasião, sabia ainda que não são raras de encontrar múmias inteiras, ou não cortadas. O cérebro era habitualmente retirado pelo nariz; os intestinos, por incisão ao lado; o corpo era em seguida, raspado, lavado e salgado; depois deixavam-no assim, durante várias semanas, quando começavam a operação de embalsamamento, propriamente dita.
Como não fosse possível encontrar nenhum sinal de abertura, preparava o Dr. Ponnonner, os instrumentos para a dissecação, quando observei, então, que já passava das duas horas. Por esse motivo todos concordaram em deixar para depois o exame interno, para a noite seguinte e já nos dispúnhamos a separar-nos, quando alguém sugeriu uma ou duas experiências com a pilha de Volta.
A aplicação da eletricidade a uma múmia velha de três ou quatro mil anos, pelo menos, era uma idéia se não bastante sensata, contudo suficientemente original e todos a acolhemos sem protesto. Com quase um décimo de seriedade e nove décimos de brincadeiras, dispusemos uma bateria no gabinete do Doutor e para lá levamos o egípcio.
Só depois do muito trabalho, foi que conseguimos pôr a nu algumas partes do músculo temporal, que se mostrou com menos rigidez pétrea, do que outras parte do corpo, mas que, como sem dúvida prevíramos, não dava indício de suscetibilidade galvânica, quando em contato com o fio.
Esta primeira experiência, de fato, pareceu decisiva e, com uma cordial risada ao nosso próprio absurdo, estávamos dando boa-noite uns aos outros, quando, casualmente, meus olhes fitaram os da múmia, e ficaram neles cravados de espanto. Meu breve olhar, na verdade, bastara para assegurar-me de que es glóbulos, que todos nós julgávamos de vidro e que, anteriormente, se distinguiam por certa fixidez estranha, estavam agora tão bem recobertos pela pálpebras, que só uma pequena parte da Túnica Albugínea permanecia visível.
Com um grito, chamei a atenção para e fato, que se tornou logo evidente a todos.
Não posso dizer que fiquei alarmado, diante do fenômeno, porque, no meu caso, “alarmado” não é bem o termo. É possível, porém, que, sem as cervejas pretas talvez me tivesse sentido um pouco nervoso. Quanto a meus companheiros, não tentaram ocultar o terror alarmante, que deles se apossara. O Dr. Ponnonner causava lástima. O Sr. Gliddon, graças a não sei que processo especial, tornara-se invisível. Creio que o Sr. Silk Buckingham não terá por certo a coragem de negar, que se arrastou de quatro pés para baixo da mesa.
Depois do primeiro choque de espanto, porém, resolvemos, como coisa natural, tentar, imediatamente, nova experiência. Nossas operações se dirigiram agora para o artelho do pé direito.
Fizemos uma incisão por cima da parte exterior do osso sesamoideum pollicis pedix e assim chegamos à raiz do músculo obductor.
Reajustando a bateria, aplicamos então o fluido aos nervos expostos, quando, com um movimento de excessiva vivacidade, a Múmia, primeiro levantou e joelho direito, a ponto de pô-lo quase em contato com o abdômen, e depois, endireitando com inconcebível força, acertou um pontapé no doutor Ponnonner, tendo, com efeito, lançado este cavalheiro, como o dardo duma catapulta, pela janela lá embaixo na rua. Precipitamo-nos, en masse, para ir buscar os restos despedaçados da vítima, mas tivemos a felicidade de encontrá-la na escada, subindo numa pressa inconcebível, repleta da mais ardente filosofia e mais do que nunca convencida da necessidade de prosseguir nossa experiência com vigor e com zelo.
Foi a conselho seu, portanto, que fizemos, sem demora, uma profunda incisão, na ponta do nariz do paciente, enquanto o próprio doutor deitando mãos fortes sobre ele, punha-o em vibrante contato com o fio. Moral e fisicamente, figurativa e literalmente, o efeito foi elétrico. Em primeiro lugar, o cadáver abriu os olhos, e piscou com bastante rapidez, durante alguns minutos, como o faz o Sr. Barnus na pantomima; em segundo lugar, espirrou; em terceiro, sentou-se; Em quarto, agitou o punho diante do rosto do Dr. Ponnonner; em quinto, voltando-se para os Srs. Gliddon e Buckinghan, dirigiu-se-lhes, no mais puro egípcio, da seguinte maneira:
? Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou tão surpreso quanto mortificado pela vossa conduta. Do Dr. Ponnonner, nada de melhor se poderia esperar. É um pobre toleirão, que nada sabe de nada. Tenho pena dele e perdôo-lhe. Mas vós, Sr. Gliddon, e vós Silk, que viajastes pelo Egito, e lá residistes, a ponto de poder crer que lá houvésseis estado desde o berço ? vós, digo eu, que tanto vivestes entre nós a ponto de falardes o egípcio tão bem, penso, como escreveis vossa língua materna ? vós, a quem sempre fui levado a olhar, como o amigo fiel das múmias ? realmente, esperava de vós uma conduta mais cavalheiresca. Que devo pensar de vossa atitude tranqüila, vendo-me assim tão estupidamente tratado? Que devo supor de vós, consentindo que Fulano, Sicrano e Beltrano me arranquem dos meus caixões, tirem-me as roupas, neste clima miseravelmente frio?
Sob que aspecto (para acabar com isto), deve encarar o fato de estardes a ajudar e incitar esse miserável velhaco do Dr. Ponnonner a puxar-me o nariz?
Há de supor-se, sem dúvida, que, ao ouvir tal discurso, naquelas circunstâncias, todos nós corremos para a porta, ou caímos em violentos ataques histéricos ou mesmo desmaiamos todos. Uma destas três coisas, digo eu, era de esperar. De fato, cada uma dessas três maneiras de proceder poderia ter sido seguida. E, palavra de honra, não posso compreender como, ou por que foi, que não fizemos nem uma coisa nem outra.
Mas talvez, a verdadeira razão esteja no espírito deste tempo, que procede totalmente de acordo com a regra dos contrários, e é agora usualmente admitida como solução de todos os paradoxos e impossibilidades. Ou talvez, quem sabe, foi somente o ar excessivamente natural e familiar da Múmia, que destituía suas palavras de seu aspecto terrível. Seja o que for, os fatos são claros, e nenhum dos presentes demonstrou qualquer medo particular, ou pareceu acreditar que se houvesse passado qualquer coisa de especialmente irregular.
Quanto a mim, achava-me convencido de que tudo aquilo estava direito e simplesmente me coloquei do lado, fora do alcance do punho da múmia. O Dr. Ponnonner meteu as mãos nos bolsos das calças, fitou diretamente a múmia e ficou excessivamente vermelho.
O Sr. Gliddon cofiava suas suíças e ajeitava o colarinho da camisa. O Sr. Buckingham baixou a cabeça e meteu o polegar direito no canto esquerdo da boca.
O egípcio olhou-o, com expressão severa, durante alguns minutos, e disse, por fim, com escárnio:
? Por que não fala, Sr. Buckinghan? Ouviu ou não e que lhe perguntei? Tire o polegar da boca!
O Sr. Buckingham, em conseqüência, teve um leve sobressalto, tirou o polegar direito do canto esquerdo da boca e, a título de indenização, inseriu o polegar esquerdo, no canto esquerdo da abertura acima mencionada.
Não tendo conseguido arrancar uma resposta do Sr. Buckingham, a Múmia se voltou, de mau humor, para o Sr. Gliddon e, em tom peremptório, perguntou, em termos gerais, o que todos nós queríamos.
O Sr. Gliddon depois de grande demora, respondeu em termos fonéticos; e, não fosse a deficiência de caracteres hieroglíficos nas tipografias americanas, grande prazer me seria dado, em transcrever aqui, no original, todo seu excelente discurso.
Aproveito a ocasião para observar que toda a conversa subseqüente, em que a Múmia tomou parte, foi travada em egípcio primitivo, por intermédio (pelo menos no que se refere a mim e aos outros membros não viajados do grupo), dos Srs. Gliddon e Buckingham, como intérpretes.
Esses cavalheiros falavam a língua materna da Múmia com inimitável fluência e graça; mas não posso deixar de observar que (devido, sem dúvida, à introdução de imagens inteiramente modernas e, como é natural, inteiramente novas para o estranho) os dois exploradores foram, por vezes, forçados ao emprego de formas visíveis, para traduzir algum significado especial.
Em dado momento, por exemplo, o Sr. Gliddon não pode fazer o egípcio compreender a palavra “política”, enquanto não esboçou sobre a parede, com um pedaço de carvão, um homenzinho de nariz cônico, cotovelos esburacados, de pé sobre um cepo, com a perna esquerda lançada para trás, o braço direito atirado para a frente, o punho fechado, os olhos girando pelo céu e a boca aberta, num ângulo de noventa graus. De modo bem igual, o Sr. Buckingham não conseguiria explicar a idéia absolutamente moderna de “whig”, sem que (a uma sugestão do Dr. Ponnonner), empalidecendo, tirasse o chinó.
Facilmente se compreenderia que o discurso do Sr. Gliddon versou principalmente sobre os vastos benefícios, extraídos para a ciência, do desempacotamento e do escavamento, das múmias, desculpando-se, desse modo, por qualquer incômodo, que pudesse ter-lhe sido causado, pessoalmente, à Múmia chamada Allamistakeo; e concluindo com uma simples insinuação (pois mal podia ser considerada mais do que isso) de que, explicados agora esses pequenos pormenores, muito bem se poderia continuar a investigação pretendida. Nesse ponto o Dr. Ponnonner preparou seus instrumentos.
Relativamente às últimas sugestões do orador, parece que Allamistakeo teve certos escrúpulos de consciência, sobre cuja natureza não fui precisamente informado; manifestou-se, porém, satisfeito com a s desculpas apresentadas e, descendo da mesa, fez volta ao grupo, apertando a mão de todos.
Quando terminou esta cerimônia, ocupamo-nos, imediatamente, em reparar os danos infligidos ao sujeito pelo escalpelo. Costuramos o ferimento de sua têmpora, pusemos-lhe uma atadura no pé e aplicamos uma polegada quadrada de emplastro preto, na ponta do nariz.
Observou-se então que o Conde (era esse, parece, o título de Allamistakeo) teve um leve tremor, sem dúvida de frio.
O Doutor imediatamente encaminhou-se para o seu armário e logo voltou com uma casaca preta, pelo melhor figurino de Jenning, um par de calças de xadrez, azul-celeste, uma camisa de gingão cor de rosa, um colete de brocado com abas, um sobretudo branco, uma bengala de passeio com ganho, um chapéu sem aba, botinas de verniz, luvas de pele de cabrito, cor de palha, um monóculo, um par de suíças e uma gravata cascata. Devido à disparidade de tamanho, entre Conde e o Doutor (sendo a proporção de dois para um), houve certa dificuldade em ajustar esses trajes à pessoa do egípcio: mas quando tudo se arranjou, podia-se dizer que ele estava bem vestido. O Sr. Gliddon lhe deu, portanto, o braço e levou-o a uma confortável cadeira, junto à lareira, enquanto o Doutor tocava imediatamente a campainha e ordenava fossem trazidos mais charutos e vinho.
A conversa em breve se animou. Muita curiosidade, sem dúvida, foi expressa, a respeito do fato, seu tanto quanto notável, de estar Allarnistakeo ainda vivo.
? Eu teria pensado ? disse o Sr. Buckingham ? que já faz muito tempo que o senhor está morto.
? Ora! replicou o Conde, bastante espantado. ? Tenho pouco mais de setecentos anos de idade! Meu pai viveu mil e não se achava de modo algum caduco, quando morreu.
Seguiu-se então uma rápida série de perguntas e cálculos, por meio dos quais se tornou evidente que a antigüidade da Múmia fora erroneamente estimada. Já se haviam passado cinco mil e cinqüenta anos e alguns meses, desde que fora ela depositada nas catacumbas de Eleithias.
? Mas minha observação ? continuou o Sr. Buckingham ? não se refere à sua idade, por ocasião do enterro (quero crer de fato, que o senhor é ainda um homem moço) e minha alusão foi à imensidade de tempo durante o qual, segundo sua própria explicação, o senhor tem estado empacotado em asfalto.
? Em quê? ? perguntou o Conde.
? Em asfalto ? repetiu o Sr. Buckingham.
? Ah! sim; tenho uma fraca noção do que o senhor quer dizer; de certo isso poderia dar resultado, mas no meu tempo empregava-se raramente outra coisa que não fosse o bicloreto de mercúrio.
? Mas o que especialmente não achamos jeito de compreender ? disse o Dr. Ponnonner ? é como acontece que, tendo morrido e sido enterrado no Egito, há mais de mil anos, esteja o senhor hoje aqui vivo e parecendo tão magnificamente bem.
? Se eu estivesse morto, como o senhor diz ? replicou o Conde ? é mais que possível que morto ainda estaria, pois percebo que os senhores estão ainda na infância do galvanismo e não podem realizar com ele o que era coisa comum entre nós, antigamente. Mas o fato é que sofri um ataque de catalepsia e meus melhores amigos acharam que eu estava morto, ou deveria estar. De acordo com isso, embalsamaram-me imediatamente.
Suponho que os senhores tem conhecimento do principal mestre do processo de embalsamamento.
? Bem, não totalmente.
? Ah! percebo… deplorável estado de ignorância! Muito bem, não posso entrar em pormenores neste momento, mas é necessário explicar, que embalsamar (propriamente falando), no Egito, era paralisar indefinidamente todas as funções animais sujeitas a este processo. Uso a palavra “animais”, no seu sentido mais lato, como incluindo não só o ser físico, como o ser modal e vital. Repito que o primeiro princípio do embalsamamento consistiu, entre nós. na paralisação imediata e na manutenção perpétua em suspenso, de todas as funções animais, sujeitas ao processo.
Para ser breve, em qualquer estado em que se encontrasse e indivíduo, no período de embalsamamento, não permaneceria vivo. Ora, como tenho a felicidade de ser do sangue do Escaravelho, fui embalsamado vivo, como os senhores me vêem agora.
? O sangue do Escaravelho! ? exclamou o Dr. Ponnonner.
? Sim. O Escaravelho era o emblema, ou as “armas” duma distintíssima e pouco numerosa família patrícia. Ser “do sangue do Escaravelho” é apenas ser um dos membros daquela família de que o Escaravelho é o emblema. Estou falando figurativamente.
? Mas que tem isso com o fato de estar vivo o senhor?
? Ora, é costume geral no Egito, antes de embalsamar um cadáver, extrair-lhe os intestinos e os miolos; só a raça dos Escaravelhos não se conformava com esse costume. Portanto, não tivesse eu sido um Escaravelho, e me haveriam extraído intestinos e miolos, e sem uns e outros é inconveniente viver.
? Entendo ? disse o Sr. Buckingham ? e suponho que todas as múmias intactas, que nos têm chegado às mãos, são da raça dos escaravelhos.
? Sem dúvida alguma.
? Eu pensava. ? disse o Sr. Gliddon, com timidez que o Escaravelho era um dos deuses egípcios.
? Um dos egípcios quê? ? perguntou a Múmia, dando um salto.
? Deuses! ? repetiu o viajante.
? Sr. Gliddon, estou realmente atônito por ouvi-lo falar neste estilo ? disse o Conde, tornando a sentar-se. Nenhuma nação, sobre a face da terra, jamais conheceu senão um único Deus. O Escaravelho, o íbis, etc., eram entre nós (o que outros seres têm sido para outras nações) os símbolos, ou intermediários, através dos quais prestávamos culto ao Criador, demasiado augusto para que dele nos aproximássemos de mais perto.
Houve aqui uma pausa. Finalmente, reatou-se a conversa pelo Dr. Ponnonner.
? Não é impossível, então, pelo que o senhor acaba de explicar ? disse ele ? que entre as catacumbas, perto do Nilo, possam existir outras múmias da tribo do Escaravelho, em condições de vitalidade.
? Não pode haver dúvida alguma a respeito ? respondeu o Conde. ? Todos os Escaravelhos embalsamados, acidentalmente, quando ainda vivos, estão vivos. Mesmo alguns dos que foram propositadamente assim embalsamados podem ter sido esquecidos pelos seus executores testamentários e ainda permanecem nos túmulos.
? Quer ter a bondade de explicar ? perguntei eu, o que quer o senhor dizer com “propositadamente assim embalsamados”?
? Com grande prazer ? respondeu a Múmia, depois de me haver examinado à vontade, através de seu monóculo, pois era a primeira vez que me aventurara a fazer uma pergunta direta.
? Com grande prazer ? disse ele. ? A duração habitual da vida de um homem, no meu tempo, era de quase oitocentos anos. Poucos homens morriam, a não ser em virtude do mais extraordinário acidente, antes dos seiscentos anos; poucos viviam mais do que uma década de séculos; mas oitocentos anos eram considerados o termo natural.
Depois da descoberta do princípio do embalsamamento, como já descrevi aos senhores, ocorreu a nossos filósofos que se poderia satisfazer uma louvável curiosidade e. ao mesmo tempo, fazer avançar os interesses da ciência, vivendo-se esse termo natural a prestações.
Relativamente à ciência histórica, de fato, a experiência demonstrava que algo dessa natureza era indispensável. Tendo por exemplo um historiador atingido a idade de quinhentos anos, escrevia um livro, com grande trabalho, e depois fazia-se embalsamar, com todo o cuidado, deixando instruções a seus executores testamentários pro tempore, para que o fizessem reviver, depois de certo lapso de tempo ? digamos quinhentos ou seiscentos anos. Voltando à vida, ao expirar aquele prazo, encontraria invariavelmente sua grande obra convertida numa espécie de caderno de notas à toa, isto é, uma espécie de arena literária, para as conjecturas antagônicas, enigmas e rixas pessoais de rebanhos inteiros de comentaristas exasperados. Essas conjecturas, etc., que passavam sob o nome de anotações, ou emendas, verificavam-se haver tão completamente envolvido, torturado e sufocado e texto, que o autor era obrigado a sair de lanterna na mão, à busca de seu próprio livro. Ao descobri-lo, nunca merecia o trabalho da busca. Depois de reescrevê-lo, totalmente, cabia ainda, como dever obrigatório do historiador, pôr-se a trabalhar, imediatamente, em corrigir, de acordo com seu saber individual a e a sua experiência, as tradições do dia, concernente à época em que ele havia originalmente vivido. Ora, este processo de recomposição e retificação pessoal, levado a efeito por diferentes sábios, de tempos em tempos, tinha como resultado evitar que nossa história degenerasse em fábula completa.
? Peço-lhe perdão ? disse o Dr. Ponnonner, neste ponto, pousando delicadamente sua mão sobre o braço do egípcio ? peço-lhe perdão, senhor, mas posso ter a liberdade de interrompê-lo um instante?
? Perfeitamente, senhor ? respondeu o Conde, afastando-se um pouco.
? Desejava fazer-lhe simplesmente uma pergunta ? disse o Doutor. ? O senhor se referiu à correção pessoal do historiador, nas tradições relativas à sua própria época. Rogo-lhe que me diga, qual a proporção, em média, de verdade misturada. a essa Cabala?
? A Cabala, como o senhor muito bem definiu, gozava em geral de fama de estar justamente a par dos fatos relatados nas próprias histórias não reescritas, isto é, jamais se viu, em circunstâncias alguma um simples jota em qualquer deles, que não estivesse absoluta e radicalmente errado.
? Mas já que está perfeitamente claro ? continuou o Doutor ? que pelo menos cinco mil anos se passaram, desde que o senhor foi enterrado, tenho como certo que vossos anais daquele período, senão vossas tradições, eram suficientemente explícitos, a respeito daquele tópico de interesse universal, que é a Criação, a qual se realizou, como suponho que é de seu conhecimento, havia apenas dez séculos antes.
? O senhor! ? disse o Conde Allamistakeo.
O Doutor repetiu suas observações, mas, somente depois de muita explicação adicional, foi que o estrangeiro pôde chegar a compreendê-las. Por mim, respondeu, hesitantemente:
? As idéias que o senhor me apresentou são, confesso, extremamente novas, para mim. No meu tempo, não conheci ninguém que sustentasse fantasia tão singular, como essa de que o universo (ou este mundo, se gostar mais) tivesse uma vez um começo. Lembro-me de que uma vez, uma vez apenas, ouvi algo de remotamente vago, de um homem de muito saber, a respeito da origem da raça humana, e esse homem empregava essa mesma palavra Adão (ou Terra Vermelha), de que o senhor fez uso. Empregava-a, porém, em sentido genérico, com referência à germinação espontânea do limo da terra (da mesma maneira por que são geradas milhares de criaturas dos mais baixos genera), a geração espontânea digo eu, de cinco vastas hordas de homens, simultaneamente brotada em cinco distintas e quase iguais divisões do globo.
Aqui, todos os presentes encolheram os ombros e um ou dois de nós tocou na fronte, com ar bastante significativo.
O Sr. Buckingham, depois de lançar ligeiro olhar para o occipício e depois para o sincipício de Allamistakeo, disse o seguinte:
? A longa duração da vida humana no seu tempo, e ainda mais a prática ocasional de passá-la, como o senhor explicou, a prestações, deve ter contribuído, na verdade, bastante poderosamente, para o desenvolvimento geral e acumulação do saber. Suponho, por conseqüência, que devemos atribuir a acentuada inferioridade dos velhos egípcios, em todos os ramos da ciência, quando comparados com os modernos e, mais especialmente, com os ianques, inteiramente à solidez mais considerável do crânio egípcio.
? Confesso novamente ? respondeu o Conde, com bastante mansidão ? que estou um tanto em dificuldade para compreendê-lo; por obséquio, a que ramos de ciência alude o senhor?
Aqui, todo o grupo, unindo as vozes, pormenorizou prolixamente, as aquisições da frenologia e as maravilhas do magnetismo animal.
Tendo-os ouvido até o fim, o Conde começou a contar algumas anedotas, que demonstraram terem florescido e fenecido no Egito, há tanto tempo, a ponto de terem sido quase esquecidas, tipo de Gall, Spurheim, de que os processos de Mesmer não passavam realmente de desprezíveis artifícios, quando comparados com os positivos milagres dos sábios tebanos, que criavam piolhos e muitos outros seres dessa espécie.
Nisto perguntei ao Conde se o seu povo era capaz de calcular eclipses. Ele sorriu, com certo desdém, e disse que era.
Isto me perturbou um pouco, mas comecei a fazer outras perguntas, a respeito de seu saber astronômico, quando um membro do grupo, que ainda não abrira a boca, cochichou a meu ouvido que, para informação a respeito do assunto, melhor seria que eu consultasse Ptolomeu (quem era esse tal de Ptolomeu?), bem como um tal Plutarco, no capítulo de facie lunae.
Interroguei depois a Múmia, a respeito de lentes convexas e doutra espécie, e, em geral, acerca da manufatura de vidro. Nas ainda não terminara eu minha pergunta e já o companheiro silencioso, de novo me tocava de mansinho o cotovelo e pedia-me, pelo amor de Deus, que desse uma olhadela em Diodoro Sículo. Quanto ao Conde, perguntou-me simplesmente, a modo de réplica, se nós modernos, possuímos microscópios, que nos permitissem gravar camafeus, no estilo dos egípcios. Enquanto pensava na maneira de responder a esta pergunta, o miúdo Doutor Ponnonner se pôs a falar de maneira verdadeiramente extraordinária.
? Veja a nossa arquitetura! ? exclamou ele, com grande indignação dos dois viajantes que o beliscavam, mas sem resultado.
? Veja ? gritou ele, com entusiasmo ? a Fonte do Jogo de Bola de New York! Ou se o espetáculo é por demais imponente, contemple por um instante o Capitólio, em Washington, D. C.! ? e o bom doutorzinho se pôs a pormenorizar, com toda a prolixidade, as proporções do edifício a que se referia. Explicou que só o pórtico estava adornado de não menos de vinte e quatro colunas, de cinco pés de diâmetro, e dez pés de distância uma das outras.
O Conde disse que lamentava não poder lembrar-se, justamente naquele momento, das dimensões precisas de qualquer dos principais edifícios da cidade de Aznac, cuja fundação se perdia na noite do Tempo, mas cujas ruínas estavam ainda de pé, na época do seu sepultamento, numa vasta planície arenosa, a oeste de Tebas. Lembrava-se, porém, (a propósito de pórticos) que um havia, pertencente a um palácio inferior, numa espécie de subúrbio chamado Carnac, e formado de cento e quarenta e quatro colunas, de trinta e sete pés de circunferência e distantes umas das outras vinte e cinco pés. Chegava-se do Nilo a esse pórtico, através duma avenida de duas milhas de extensão, formada de esfinges, estátuas e obeliscos, de vinte, de sessenta e de cem pés de altura. O próprio palácio (pelo que podia lembrar) tinha, só numa direção, duas milhas de comprimento e ao todo poderia ter cerca de sete de circuito. Suas paredes estavam todas ricamente pintadas, por dentro e por fora, de hieróglifos. Não pretendia afirmar que mesmo cinqüenta ou sessenta dos Capitólios do Doutor pudessem ter sido construídos, dentro daquelas paredes, mas de nenhum modo achava impossível que duzentos ou trezentos deles pudessem ser lá dentro comprimidos, sem muita dificuldade. Aquele palácio de Carnac não passava afinal duma insignificância. Ele (o Conde), porém, não podia em consciência recusar-se a admitir a engenhosidade, a magnificência e a superioridade da Fonte do Jogo da Bola, tal como foi descrita pelo Doutor. Nada de semelhante, era forçado a convir, fora jamais visto no Egito, nem em qualquer outra parte.
Perguntei então ao Conde qual sua opinião a respeito de nossas estradas de ferro.
? Nada de particular ? respondeu ele.
Eram um tanto fracas, um tanto mal projetadas e toscamente construídas. Não podiam ser comparadas, por certo, com as estradas vastas, planas, retas e raiadas de ferro, sobre as quais os egípcios transportavam templos inteiros e sólidos obeliscos, de cento e cinqüenta pés de altura. Falei de nossas gigantescas forças mecânicas.
Concordou que alguma coisa conhecíamos nesse particular, mas indagou quanto teria eu de trabalhar, para levantar as cornijas sobre os dintéis, como do pequeno palácio de Carnac.
Resolvi não dar por ouvida esta pergunta e perguntei se ele tinha alguma idéia de poços artesianos, mas ergueu simplesmente as sobrancelhas, enquanto o Sr. Gliddon piscava fortemente para mim e dizia, em voz baixa, que fora descoberto um, recentemente, por engenheiros encarregados de canalizar água para o Grande Oásis.
Mencionei depois nosso aço, mas o estrangeiro levantou o nariz e perguntou-me se nosso aço podia ter executado o duro trabalho de insculpir os obeliscos, realizado totalmente com instrumentos cortantes de cobre.
Isto nos desconcertou tanto que achamos prudente mudar nosso ataque para a metafísica. Mandamos buscar um exemplar do livro, chamado o Relógio de Sol, e lemos um capítulo ou dois, a respeito dum assunto não bastante claro, mas que os bostonianos chamam de Grande Movimento do Progresso.
O Conde disse simplesmente que Grandes Movimentos eram coisas excessivamente comuns no seu tempo e quanto ao Progresso, foi, em certo tempo, uma completa calamidade, porém jamais progredira.
Falamos então da grande beleza e da importância da Democracia e muito nos esforçamos para fazer bem compreender ao Conde as vantagens de que gozávamos em viver num país onde havia sufrágio ad libitum, e não havia rei. Ele escutou com todo interesse e de fato mostrou-se não pouco divertido. Quando acabamos, disse ele que, há muitíssimo tempo, ocorrera algo bem semelhante. Treze províncias egípcias resolveram tornar-se imediatamente livres e dar assim um magnífico exemplo ao resto da humanidade. Reuniram-se seus sábios e cozinharam a mais engenhosa constituição, que é possível conceber-se. Durante algum tempo, as coisas correram admiravelmente bem, somente que seu costume de ufanar-se era prodigioso. A coisa acabou, porém, com a consolidação dos treze estados, com mais quinze ou vinte outros, no mais odioso e insuportável despotismo de que jamais se ouviu falar na superfície da Terra.
Perguntei o nome do tirano usurpador.
Tanto quanto podia lembrar-se, era POPULAÇA.
Não sabendo que dizer a isso, ergui a voz e deplorei que os egípcios não conhecessem o vapor.
O Conde olhou para mim com bastante espanto, mas não deu resposta. O cavalheiro silencioso, porém, deu-me uma violenta cotovelada nas costelas dizendo-me que eu já me havia suficientemente comprometido duma vez, e perguntou se eu era tão maluco, realmente, para não saber que a moderna máquina a vapor deriva da invenção de Hero, através de Salomão de Caus.
Estávamos agora em eminente perigo de sermos derrotados, mas nossa boa sorte fez que o Doutor Ponnonner, tendo-se reanimado, voltasse em nosso auxílio e perguntasse se o povo do Egito pretendia seriamente rivalizar com os modernos, em todas as importantíssimas particularidade, do trajo.
Ouvindo isto, o Conde baixou a vista sobre as alças de suas calças e, depois, pegando a ponta de uma das abas de sua casaca, levou-a até bem perto dos olhos, examinando-a, durante alguns minutos. Deixando-a cair, por fim, sua boca escancarou-se gradualmente, duma orelha à outra, mas não me recordo se ele disse qualquer coisa à guisa de resposta.
Neste momento, recuperamos nossas energias e o Doutor, aproximando-se da Múmia, com grande dignidade, rogou-lhe que lhe dissesse, com toda a franqueza, e sob sua honra de cavalheiro, se os egípcios tinham compreendido em alguma época, a fabricação, quer das pastilhas de Ponnonner, quer das pílulas de Bandreth.
Aguardávamos, com profunda ansiedade, uma resposta, mas foi em vão. A resposta não chegava. O egípcio enrubesceu e baixou a cabeça. Jamais houve triunfo mais consumado; jamais derrota alguma foi suportada de tão má vontade. De fato, não podia tolerar o espetáculo da mortificação da pobre Múmia. Peguei do chapéu, cumprimentei-a e despedi-me.
Ao chegar em casa, já passava das quatro horas e fui imediatamente para a cama. São agora dez horas da manhã. Estou de pé desde as sete, escrevendo estas notas, em benefício da minha família e da humanidade. Quanto à primeira, não mais a verei. Minha mulher é uma víbora. A verdade é que estou nauseado, até o mais íntimo, desta vida e do século dezenove em geral. Estou convencido de que tudo vai de pernas viradas. Além disso, estou ansioso por saber quem será o Presidente, em 2045. Portanto, logo que acabar de barbear-me e de tomar uma xícara de café, irei até a casa de Ponnonner fazer-me embalsamar por uns duzentos anos.
Edgar Allan Poe
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais”.
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.”
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigo, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhão também te vais”.
Disse o corvo, “Nunca mais”.
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo one ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!
Edgar Allan Poe
Tradução de Fernando Pessoa
Fonte desconhecida
Desgraça é variada. O infortúnio da terra é multiforme. Estendendo-se pelo vasto horizonte, como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, intimamente misturadas. Estendendo-se pelo vasto horizonte, como o arco-íris! Como é que, da beleza, derivei eu um exemplo de feiúra? Da aliança da paz, um símile de tristeza? Mas é que, assim como na ética o mal é uma conseqüência do bem, igualmente, na realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as agonias que existem agora têm sua origem nos êxtases que podiam ter existido
Meu nome de batismo é Egeu; o de minha família não o mencionarei. E, no entanto, não há torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar de meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada uma raça de visionários. Em muitos pormenores notáveis, no caráter da mansão familiar, nos afrescos do salão principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinzeladuras de algumas colunas da sala de armas, porém mais especialmente na galeria de pinturas antigas, no estilo da biblioteca, e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há mais que suficiente evidência a garantir minha assertiva.
As recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligadas àquela sala e aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mãe. Ali nasci. Mas é ocioso dizer que eu não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia. Vós negais isto? Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não procuro convencer. Há, porém, uma lembrança de forma aérea, de olhos espirituais e expressivos, de sons musicais embora tristes; uma lembrança que jamais será apagada; uma reminiscência parecida a uma sombra, vaga, variável, indefinida, instável; e tão parecida a uma sombra, também, que me vejo na impossibilidade de livrar-me dela enquanto a luz de minha razão existir.
Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que parecia mas não era, o nada, para logo cair nas mesmas regiões da terra das fadas, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensamento monástico e da erudição, não é de estranhar que tenha eu lançado em torno de mim um olhar ardente e espantado, que tenha consumido minha infância nos livros e dissipado minha juventude em devaneios; mas é estranho que, com o correr dos anos, e tendo o apogeu da maturidade me encontrado ainda na mansão de meus pais; é maravilhoso que a inércia tenha tombado sobre as fontes da minha vida; é maravilhoso como total inversão se operou na natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto as loucas idéias da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência cotidiana, mas, na realidade, a própria existência em si, completa e unicamente.
Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melancolia, ela, ágil, graciosa e exuberante de energia; ela, entregue aos passeios pelas encostas da colina, eu, aos estudos no claustro. Eu, encerrado dentro do meu próprio coração e dedicado, de corpo e alma, à mais intensa e penosa meditação, ela, divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras no seu caminho ou no vôo saliente das horas de asas lutulentas. Berenice! – invoco-lhe o nome – Berenice! – e das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas recordações ao som da invocação! Ah! bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos velhos dias de sua jovialidade e alegria! Oh! deslumbrante, porém fantástica beleza! Oh! sílfide entre arbustos de Arnheim! Oh! náiade entre as suas fontes! E depois. . . depois tudo é mistério e horror, uma história que não deveria ser contada. Uma doença, uma fatal doença, soprou, como o simum, sobre seu corpo. E precisamente quando a contemplava, o espírito da metamorfose arrojou-se sobre ela invadindo-lhe a mente, os hábitos e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível, perturbando-lhe a própria personalidade! Ah! o destruidor veio e se foi! E a vítima. . . onde estava ela? Não a conhecia. . . ou não mais a conhecia como Berenice!
Entre a numerosa série de males, acarretados por aquele fatal e primeiro que ocasionou uma revolução de tão horrível espécie no ser moral e físico de minha prima, pode-se mencionar como o mais aflitivo e obstinado em sua natureza, uma espécie de epilepsia, que, não raro, terminava em transe cataléptico, transe muito semelhante à morte efetiva e da qual despertava ela quase sempre duma maneira assustadoramente subitânea. Entrementes, minha própria doença – pois me fora dito que eu não poderia dar-lhe outro nome – minha própria doença aumentou e assumiu afinal um caráter de monomania, de forma nova e extraordinária, e a cada hora e momento crescia em vigor e por fim veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendência. Esta monomania, se devo assim chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito denominadas pela ciência metafísica “faculdades da atenção “. É mais que provável não me entenderem, mas temo, deveras, que me seja totalmente impossível transmitir à mente do comum dos leitores uma idéia adequada daquela nervosa INTENSIDADE DE ATENÇÃO com que, no meu caso, as faculdades meditativas (para evitar a linguagem técnica) se aplicavam e absorviam na contemplação dos mais vulgares objetos do mundo.
Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção voltada para alguma frase frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico; ficar absorto, durante a melhor parte dum dia de verão, na contemplação duma sombra extravagante, projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder uma noite inteira olhando a chama imóvel duma lâmpada, ou as brasas de um fogão; sonhar dias inteiros com o perfume de uma flor; repetir, monotonamente, alguma palavra comum, até que o som, à força da repetição freqüente, cessasse de representar ao espírito a menor idéia, qualquer que fosse; perder toda a noção de movimento ou de existência física, em virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e obstinadamente mantida – tais eram os mais comuns e menos perniciosos caprichos provocados por um estado de minhas faculdades mentais, não, de fato, absolutamente sem paralelo, mas certamente desafiando qualquer espécie de análise ou explicação.
Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção assim excitada por objetos, em sua própria natureza triviais, não deve ser confundida, a propósito, com aquela propensão ruminativa comum a toda a humanidade e, mais especialmente, do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era tampouco, como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou um a exageração de tal propensão, mas primária e essencialmente distinta e diferente dela. Naquele caso, o sonhador ou entusiasta, estando interessado por um objeto, geralmente não trivial, perde imperceptivelmente de vista esse objeto através duma imensidade de deduções, e sugestões dele provindas, até que, chegando ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repleto de voluptuosidade, descobre estar o incitamentum, ou causa primeira de suas meditações, inteiramente esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, embora assumisse, por força de minha visão doentia, uma importância irreal e refratada. Nenhuma ou poucas reflexões eram feitas e estas poucas voltavam, obstinadamente, ao objeto primitivo, como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis, e, ao fim do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora de vista, atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado, que era a característica principal da doença. Em uma palavra, as faculdades da mente, mais particularmente exercitadas em mim, eram, como já disse antes, as da atenção ao passo que no sonhador-acordado são as especulativas.
Naquela época, os meus livros, se não contribuíam efetivamente para irritar a moléstia, participavam largamente, como é fácil perce-ber-se, pela sua natureza imaginativa e inconseqüente, das qualidades características da própria doença. Bem me lembro, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio ‘De AMPLITUDINE BEATI REGNI DEI;” da grande obra de Santo Agostinho, “A CIDADE DE DEUS”; do “De CARNE CHRISTI”, de Tertuliano, no qual a paradoxal sentença: MORTUS EST DEI FILIUS; CREDIBILE EST QUIA INEPTUM EST: ET SEPULTUS RESUR-REXIT; CERTUM EST QUIA IMPOSSIBiLE EST”, absorveu meu tempo todo, durante semanas de laboriosa e infrutífera investigação.
Dessa forma, minha razão perturbada, no seu equilíbrio, por coisas simplesmente triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo, de que fala Ptolomeu Hefestião, que resistia inabalável aos ataques da violência humana e ao furioso ataque das águas e dos ventos, mas tremia ao simples toque da flor chamada asfódelo. E embora a um pensador desatento possa parecer fora de dúvida que a alteração produzida pela lastimável moléstia no estado moral de Berenice fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal meditação, cuja natureza tive dificuldades em explicar, contudo tal não se deu absolutamente. Nos intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me mortificava realmente, e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, e amargamente, nas causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificações tão estranhas. Mas essas reflexões não participavam da idiossincrasia de minha doença, e eram as mesmas que teriam ocorrido, em idênticas circunstâncias, à massa ordinária dos homens. Fiel a seu próprio caráter, minha desordem mental preocupava-se com as menos importantes, porém mais chocantes mudanças, operadas na constituição física de Berenice, na estranha e verdadeiramente espantosa alteração de sua personalidade.
De modo algum, jamais a amara durante os dias mais brilhantes de sua incomparável beleza. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao meio-dia, e no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser da terra, terreno, mas como a abstração de tal ser; não como coisa para admirar, mas para analisar; não como um objeto de amor, mas como o tema da mais abstrusa, embora inconstante, especulação. E agora. . . agora eu estremecia na sua presença e empalidecia à sua aproximação; embora lamentando amargamente sua decadência, e sua desolada condição, lembrei-me de que ela me amava desde há muito e num momento fatal, falei-lhe em casamento.
Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa tarde de inverno, de um daqueles dias intempestivamente cálidos, sossegados e nevoentos, que são a alma do belo Alcíone, sentei-me no mais recôndito gabinete da biblioteca. Julgava estar sozinho, mas, erguendo a vista, divisei Berenice, em pé à minha frente.
Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera, ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinzentas roupagens que lhe caiam em torno do corpo, que lhe deram aquele contorno indeciso e vacilante? Não sei dizê-lo. Ela não disse uma palavra e eu, por forma alguma, podia emitir uma só sílaba. Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável ansiedade me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma e, recostando-me na cadeira, permaneci por algum tempo imóvel e sem respirar, com os olhos fixos no seu vulto. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da criatura de outrora se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ardente pousou-se afinal em seu rosto.
A fronte era alta e muito pálida e de uma placidez singular. O cabelo, outrora negro, de azeviche, caía-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes encovadas com numerosos anéis, agora dum amarelo vivo, discordando, pelo seu caráter fantástico, da melancolia reinante em suas feições. Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas, e desviei involuntariamente a vista de sua fixidez vítrea para contemplar-lhe os lábios delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus nunca os tivesse visto, ou que, tendo-os visto, tivesse morrido!
O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia abandonado o aposento. Mas do aposento desordenado do meu cérebro não havia saído, ai de mim! e não queria sair, o espectro branco e horrível de seus dentes. Nem uma mancha se via em sua superfície, nem um matiz em seu esmalte, nem uma falha nas suas bordas, que aquele breve tempo de seu sorriso não me houvesse gravado na memória. Via-os agora, mesmo mais distintamente do que os vira antes. Os dentes!. . – Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda a parte, visíveis, palpáveis, diante de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria de minha monomania e em vão lutei contra sua estranha e irresistível influência. Os múltiplos objetos do mundo exterior não me despertavam outro pensamento que não fosse o daqueles dentes, Queria-os com frenético desejo. Todos os assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva contemplação. Eles. Somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito, e eles, na sua única individualidade, se tornaram a essência de minha vida mental. Via-os sob todos os aspectos. Revolvia-os em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua conformação. Refletia na alteração de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhes, em imaginação, faculdades de sentimento e sensação e, mesmo quando desprovidos dos lábios, capacidade de expressão moral. Dizia-se, com razão, de Mademoiselle de Sallé; que tous ses pas êtaient des sentiments” e de Berenice, com mais séria razão acreditava “que toutes ses dents étaient des idées”. Idées! Ah! esse foi o pensamento absurdo que me destruiu! Des idées! ah! eis porque eu os cobiçava tão loucamente! Sentia que somente a posse deles poderia restituir-me a paz, e devolver-me a razão.
E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas, demoraram, foram embora. E o dia raiou mais uma vez. E os nevoeiros de uma segunda noite de novo se adensavam em torno de mim. E eu ainda continuava sentado, imóvel, naquele quarto solitário, ainda mergulhado em minha meditação, ainda com o fantasma dos dentes, mantendo sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar, com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes e sombras mutáveis do aposento. Afinal, explodiu em meio de meus sonhos um grito de horror e de consternação, ao qual se seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos lamentos de tristeza e pesar. Levantei-me e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi, de pé, na antecâmara, uma criada, toda em lágrimas, que me disse que Berenice não mais. . – vivia! Fora tomada de um ataque epiléptico pela manhã e agora ao cair da noite, a cova estava pronta para receber seu morador e todos os preparativos do enterro estavam terminados.
Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi-me, com repugnância, para o quarto de dormir da defunta. Era um quarto vasto, muito escuro, e eu me chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do leito, disse-me um criado, estavam fechados sobre o ataúde e naquele ataúde, acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.
Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo ?- Não vi moverem-se os lábios de ninguém; entretanto, a pergunta fora realmente feita e o eco das últimas sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma sensação opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias dobras das cortinas mas, deixando-as cair de novo, desceram elas sobre meus ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encerraram na mais estreita comunhão com a defunta.
Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do ataúde me fazia mal e imaginava que um odor deletério se exalava já do cadáver. Teria dado mundos para escapar, para livrar-me da perniciosa influência mortuária, para respirar, uma vez ainda, o ar puro dos céus eternos. Mas, faleciam-me as forças para mover-me, meus joelhos tremiam e me sentia como que enraizado no solo, contemplando fixamente o rígido cadáver, estendido ao comprido, no caixão aberto.
Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inexprimível terror, ergui lentamente os olhos para ver o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado o queixo com um lenço, o qual, não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam numa espécie de sorriso, e, por entre sua moldura melancólica, os dentes de Berenice, brancos luzentes, terríveis, me fixavam ainda, com uma realidade demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente do leito e sem pronunciar uma palavra, como louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de morte.
Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só. Parecia-me que, havia pouco, despertara de um sonho confuso e agitado. Sabia que era então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr-do-sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, do que ocorrera durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção positiva, ou pelo menos definida. Sua recordação, porém, estava repleta de horror, horror mais horrível porque impreciso, terror mais terrível porque ambíguo. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda escrita com sombrias, medonhas e ininteligíveis recordações. Tentava decifrá-la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa; que era, porém? Interrogava-me em voz alta e os ecos do aposento me respondiam “Que era?”
Sobre a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e, perto dela, estava uma caixinha. Não era de aspecto digno de nota e eu freqüentemente a vira antes, pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e meus olhos, por fim, caíram sobre as páginas abertas de um livro e sobre uma sentença nelas sublinhada. Eram as palavras singulares, porém simples, do poeta Ebn Zaiat: “Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas’. Por que, então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?
Uma leve pancada soou na porta da biblioteca e, pálido como o habitante de um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada de pavor e ele me falou em voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem, que perturbara o silêncio da noite. -da acorrência dos moradores da casa. – – de uma busca do lugar de onde viera o som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao murmurar a respeito de um túmulo violado — . de um corpo desfigurado, desamortalhado, mas ainda respirante, ainda pal-pitante, ainda vivo!
Apontou para minhas roupas; estavam sujas de barro e de coágulos de sangue. Eu nada falava e ele pegou-me levemente na mão; havia, gravadas nela, sinais de unhas humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede, que contemplei por alguns minutos: era uma pá.
Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que sobre ela jazia. Mas não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força, quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas brancas, pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.
Edgar Allan Poe
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